Caetano Veloso 2
CAETANO VELOSO
Santo Amaro da Purificação, BA — 1942
Incluir Caetano Veloso em um livro dedicado à poesia significa reconhecer uma tradição
lírica muito peculiar à literatura brasileira: o cancioneiro popular, que remonta a Noel Rosa,
Cartola e Humberto Teixeira e chega até nossos dias com Dorival Caymmi, Chico Buarque,
Gilberto Gil, Aldir Blanc, Paulo César Pinheiro, Luiz Tatit e Tom Zé, entre tantos outros.
Discute-se muito se as letras de MPB devem ser lidas de um ponto de vista estritamente
poético, desvinculadas das músicas com as quais foram criadas. A questão traz nas
entrelinhas um julgamento de valor, como se o fato de ser indissociável de melodias e
harmonias circunscrevesse essa produção a um gênero menor (prova disso são
as resistências à obra de Vinicius Pág. 39] de Moraes). Mas também existe o argumento de
que no Brasil — graças a inventividade singular de compositores que prescindem de
comparações com a literatura "pura"—, a canção popular se tornou um gênero maior.
Seja como for, a recente publicação de Letra Só (2003), reunindo 180 composições de
Caetano Veloso, demonstra que podemos enxergá-las também como poemas. Lendo os
versos de "Língua", por exemplo, seria quase possível esquecer as harmonias e a voz do
compositor — se isso não significasse a pobreza de espírito de trocar o mais pelo menos,
de ignorar as virtualidades latentes na pergunta que ele mesmo formula: "O que quer/ O
que pode/ Esta língua?"
Nas mãos de Caetano, a língua pode muito: assimila a alta tradição lírica ao
experimentalismo concreto ("Sampa"), deglute a si mesma em gesto que reproduz
metalingüisticamente aquilo que denuncia ("O furto, o estupro, rapto pútrido/ O fétido
sequestro,/ O adjetivo esdrúxulo em U") e se reinventa numa sucessão barroca de
neologismos (como em "Outras Palavras": "Parafins, gatins, alphaluz, sexonhei da
guerrapaz/ Ouraxé, palávoras, driz, okê, cris, espacial").
Já em 1967, ao comentar uma de suas músicas, Augusto de Campos identificava os
procedimentos poéticos do compositor: "A letra de 'Alegria, Alegria' traz o imprevisto da
realidade urbana, múltipla e fragmentária, captada isomorficamente através de uma
linguagem nova, também fragmentária, onde predominam substantivos-estilhaços da
'implosão informativa' moderna [...]. E o mundo das 'bancas de revista'.
O mundo da comunicação rápida, do 'mosaico informativo' de que fala Marshall McLuhan".
A frase é uma síntese de sua obra: sem ter jamais abandonado as referências, Augusto de
Campos. "A Explosão de 'Alegria Alegria'", Em: O balanço da Bossa Outras Bossas.. São
Paulo: Perspectiva. 1993. (Publicado originalmente em O Estado de São Paulo,
25/11/1967.)
Caetano resistiu à folclorização nacionalista do subdesenvolvimento, recriando nossa
dialética modernidade-arcaísmo (magnificamente presentificada no poemamanifesto
"Tropicália"). Nesse sentido, é importante notar que a canção "Fora da Ordem" pode ser
lida como o primeiro poema de nossa literatura a refletir (ainda em 1991) o impacto da
globalização num país periférico como o Brasil e que sua autobiografia, Verdade Tropical
(1997), é também uma radiografia da cultura brasileira nas últimas décadas.
"A seleção revelou muita coisa interessante da dicção dessas palavras escritas para serem
cantadas que eu não perceberia de outra forma", confessa Caetano Veloso. "Senti que as
letras, apresentadas na condição de poemas,
mostraram virtudes que eu não desconfiava que possuíssem e fiquei surpreso com valores
que eu não observava."
Eucanaã Ferraz toma o cuidado de não chamar as letras de poemas e não chamar
Caetano de poeta. "Ele faz as letras para a música", observa." Mas há, na transposição
para um papel, um deslocamento formidável, como o que em Cinema Falado assegurava a
impureza do cinema; aqui, o poema cantado, observado distante da melodia, mostra-se em
outra dimensão. E é surpreendente como, mesmo para quem conhece bem as melodias,
ao ler as letras fora dos encartes dos discos percebe outros valores. É como se o tempo
todo essas letras estivessem nos enganando, fingindo não ser poemas. A reunião em livro
dá numa forma de vida nova para os escritos."