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Enquanto João Fernandes, ao rebrilho das primeiras estrelas, se recolhia indiferente, para desespero da
mulata mais atrevida da Vila do Príncipe, duas ruas mais abaixo, tomando-se a mão para a Igreja das Mercês,
ia uma bela cena doméstica: no chalé asseado do intendente-geral Francisco José Pinto de Mendonça, o Mucó
do povo, o dono da casa, calças de dormir opala azul-ferrete com grossos cordões por cima das ceroulas
riscadinhas, de flanela, o busto só vestido de uma enorme quantidade de pêlos duros, enrolados, negros e
brancos, mãos cruzadas sobre o ventre abaulado como as dos defuntos, também abundantes de feios pêlos,
Sua Excelência dormia a sono solto, a remoer sua farta ceia de lombo e favas, empurrada com meia canada de
rascante, tanto mais apreciado quanto mais atrasadas nas horas de servir, pelo arrastar-se da festa de
recepção ao contratador.
Sentada em sua elegante penteadeirazinha de pau-branco, dona Hortênsia mordia a ponta de uma
pena, sem tirar os olhos da bocarra escancarada do marido, a emitir sincopados roncos, no jeito de quem vai
ter uma coisa...
— Bem feito se uma mosca entrar! — Hortênsia se riu imaginando artes. Não demorou, porém,
compassando, com um suspiro de conformação, a pena molhada no tinteiro de largas louças, com o resfolegar
do dorminhoco, a subir e descer a barriga na cama do casal, a mulher abriu caligrafia bonita no papel já
aparado no timbre denunciador da origem oficial, e escreveu, depois de vigiar mais uma vez o farto sono do
intendente: “Meu Bel’Homem J. F. de O. Aos 10 dias do mês de setembro do ano de C. de 1758. — Assistindo
em esta vila. Muitos saudares. A pessoa que avisa é um amigo. Assim diz um ditado nosso. Rezando pelo
adágio, eu aviso: cuide Vossa Mercê com determinada dama que esteve muito presente à chegada de V. M.,
hoje, pela manhã. Para melhor aclaramento desta, digo que a perigosa criatura foi a mesma que teve a
petulância de oferecer a V. M. aquele ramo de rosas vermelhas que é, como se diz, a cor da paixão.”
Terminada a frase, Hortênsia releu-a baixinho. Examinou detidamente o sono do marido, molhou a pena
outra vez e prosseguiu com letra limpa, da melhor cultura européia, um absurdo na época: “Em verdade,
Senhor Contratador, aquilo que se viu foi de estarrecer um frade de pedra! Se tão ilustre homem, como o é V.
M., foi cego ao fato é que, entre as perfeições de sua alma, conta-se o ser discreto. Infelizmente, esse dom não
possui a fidalga, motivo desta. Não houve quem não anotasse com as dimensões de um escândalo, olhares,
palavras, posturas, sorrisos, verdadeiras punhadas de indecência com que aquela referida senhora, tida e
havida como a mais linda e recatada do Distrito, endereçava a V M., da maneira mais direta e sem nenhum
temor ao público, já não dizendo ao marido que, conforme percebeu V M., se trata do maior e do mais elevado
Poder da Demarcação. Poder a que até mesmo V M., Senhor Contratador, terá, por dever de ordem, de
protestar excelência”. Relendo a frase, a alegre missivista pôs-se séria. Descansou a pena com método junto ao
areeiro de prata com que, depois, secou toda a folha, para uma nova página. Mas, antes de recomeçar,
murmurou por entre dentes:
— Isto, meu contratador das dúzias, é pra que tu não me ponhas as manguinhas de fora e queiras ser o
rei cá da Demarcação. Hás de me respeitar e obedecer que, se o Mucó não der de si (o que não há de dar
mesmo), terás, por trás dele, minha vontade e minha ordem. — Agora, com menor diversão, dona Hortênsia
terminou apressada: “Porém o que mais nos aterra nesse oferecimento libertino para a traição ao marido, é que
ao cujo supracitado, pouco se lhe dava o que ia mesmo por debaixo de sua penca. Esse gaiato, que traz o feio
apelido de uma ave encapotada de nossa terra por relação à sua tolerância sem demarcações, inclusive para
com a linda e delicada esposa, diga-se por força da Justiça, jamais foi enganado algures unicamente pelo fato
de não se encontrar na Vila, até esta manhã, figura tão guapa e formosa como o é a de V M..”
— Deus que me perdoe! — dona Hortênsia exclamou, a meia voz, com uma gargalhada abafada. Mas,
logo, lembrando-se do marido ali dormindo, tapou a boca com as mãos. Em seguida, tomou a pena que afiou
com um pequeno canivete, embebeu-a no tinteiro e prosseguiu com muita seriedade: “Olhos abertos, Senhor
Contratador, que, mais, não seria possível para a perdição de V M. que senhora de tão alta Casa. Quem tem a