Incidente em Antares
“–Ora, eu estava serena no sono da morte quando de repente vi uma luz fortíssima. Imaginei que
fosse o olho luminoso de Deus e disse-. “Aqui estou, Senhor, em Vossas mãos entrego a minha alma!”. Ouvi um
grito de susto, a luz caiu e entrevi o vulto dum homem que saía disparando. ..
–Possivelmente um desses profanadores de cemitérios ...
–Talvez tenha sido isso mesmo, um ladrão... –Põe-se a apalpar os dedos, o pulso, o peito, o
pescoço, as orelhas. –Ai! Fui roubada, doutor! O bandido levou todas as minhas joias! –Levanta-se. –Fui
roubada! Meu Deus! Joias antigas de família...
–Desculpe-me, D. Quitéria, mas asseguro-lhe que a senhora foi posta no seu esquife sem
nenhuma das suas joias, nem mesmo a aliança de casamento.
–Como é que o senhor sabe?
–Simples. Fui ao seu velório prestar-lhe uma homenagem. Por sinal levei-lhe um ramo de
gladíolos vermelhos e amarelos, que eu mesmo depositei junto de seu corpo. Fiquei algum tempo a seu lado.
Seu amigo Tibério Vacariano é testemunha desse fato. Conversamos a seu respeito, fizemos os maiores elogios
(aliás muito merecidos) à sua pessoa. Mas repito, sob palavra de honra, que não vi no seu corpo nenhuma joia.
–Mas eu deixei com minhas filhas e meus genros disposições escritas muito claras: queria trazer
comigo para a sepultura todas as joias que herdei de meus antepassados ...
–As suas disposições não foram então cumpridas.
–Tratantes! Gananciosos!
Ela sai a caminhar devagarinho dum lado para outro, arrastando os pés, com as mãos na cintura.
–D. Quitéria, eu não os censuro. Seria um desperdício sepultar nesse caixão algumas centenas de
milhões de cruzeiros...
–Mas não basta o que lhes deixo em terras, casas, títulos, dinheiro, sim, e outras joias de valor?”
Érico Veríssimo
LÍNGUA PORTUGUESA, 2º Ano do Ensino Médio
A literatura engajada