A morte na cultura guarani

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A morte na
Cultura Guarani
por Benedito Prezia
ão existe uma cultura indígena no Brasil, mas inúmeras. Várias delas
apresentam um fundo comum, como a dos povos de língua jê ou a dos
povos de língua tupi-guarani, com sua visão de vida e morte.
Apresentaremos a visão do povo Guarani sobre a morte, que é próxima visão
dos povos Tupinambá e Tupinikim, que povoaram a costa brasileira e que
muito marcaram nossa cultura
“Ensina-nos a atravessar para o outro lado do oceano”
Nosso Pai, ensina como chegar à sua Morada.
Nosso Pai, ensina a atravessar para o outro lado do oceano ...
(Canto da aldeia Sapucaí, Angra dos Reis, RJ)
Esta estrofe de um canto religioso, do CD Ñhande Reko Arandu-Memória
viva Guarani, gravado pelos Guarani do litoral paulista e fluminense, mostra
como está presente no dia-a-dia a idéia da busca da Terra sem Males, situada
no outro lado do oceano. O fato de esse povo ter sido aldeado pelos jesuítas
durante 150 anos, nos séculos 16 e 17, interferiu em algumas de suas
concepções religiosas.
Atitudes em face da morte
Diante da morte, o Guarani tem três atitudes: um grande medo dos falecidos,
uma conformidade perante a morte e um profundo desejo de chegar à Terra
sem Males. Esse medo da morte, que ao mesmo tempo se mistura a um desejo
de alcançá-la, pode parecer contraditório, mas o é, apenas aparente. O medo
que tem, não é da morte, mas do falecido, ou melhor, da alma que saiu do
corpo, a anguêry.

Segundo o Guarani, temos três almas: a
nhe’enguê ou nhe’em, a alma boa, espiritual, que
vai para o Além quando a pessoa morre, não afetando os vivos; a anguêry, a
alma animal, responsável pelas más inclinações e que fica na terra por um
tempo depois da morte, assombrando os vivos; a avyu-kuê, a sombra, uma
cópia imperfeita da pessoa, permanecendo nos ares e não incomodando
ninguém. A doença é a ausência temporária da nhe’em, da alma boa. A morte
é a saída definitiva dessa alma. O sonho é a saída nhe’em para esse outro
mundo.
Por isso, os sonhos têm tanta credibilidade, pois são como a mensagem que a
alma recebeu dos outros espíritos. Após a morte, a alma boa sai
imediatamente, enquanto a alma animal fica vagando próximo ao cemitério
por longo tempo, podendo causar mal às pessoas. Por isso, os cemitérios e as
antigas aldeias, onde há pessoas enterradas, devem ser evitados, pois são
locais onde esses espíritos estão presentes. O lugar onde ocorreu uma morte
súbita ou violenta é temido, porque o nhe’em do falecido fica vagando por ali,
pois não teve tempo para se preparar para sair do corpo.
Logo depois da morte, muitas vezes ouvem-se gemidos ou barulhos estranhos
na aldeia e a explicação dada é que o falecido está visitando, pela última vez,
os lugares onde viveu. Quando há choro ou gritos, as pessoas vão ao
cemitério, onde acendem uma vela ou fazem uma pequena fogueira, pois
acreditam que a alma do falecido está passando necessidades. Na cultura
brasileira, o sonho com alguma pessoa falecida é o sinal de que ela está
precisando de oração ou de uma vela para iluminá-la. O sentimento de
conformidade diante da morte denota uma atitude de resignação ante um fato
irreversível, uma certa fatalidade.
O antropólogo Egon Schaden, grande especialista em cultura guarani,
relata ter ouvido expressões como essa:
“Quando a gente tem que morrer, tratamento não vale nada”. Assim, o
tratamento médico tem credibilidade se a doença é vista como enfermidade de
“branco”. Se for “doença de índio”, só o pajé pode curá-la. Finalmente, há o
profundo desejo da morte. Esse sentimento, classificado por Schaden de
tanatomania (desejo de morrer), é observado de várias maneiras, inclusive nas
músicas. A morte é vista não como uma dolorosa ruptura da vida presente,
mas como uma libertação, o atalho para se chegar à tão sonhada Yvy marã ei,
a Terra sem Males.
Habitação típica dos índios Guarani

Diante de uma vida difícil, a ida para o
Além é libertação. Isso talvez explique o
alto índice de suicídios entre os Guarani
Kaiowá e Nhandeva do Mato Grosso do
Sul. Problemas pessoais, aliados à falta de
terra e à impossibilidade de se viver na
“maneira guarani”, fazem com que muitos
jovens busquem essa saída trágica.
Os pretextos podem ser vários, como uma
discussão com a namorada, a repreensão do
pai ou a briga com um colega. Segundo o
Conselho Indigenista Missionário, entre
1990 e 1996, ocorreram 243 suicídios, no
Mato Grosso do Sul, entre uma população que não chegava a 30 mil pessoas.
A idéia de um “paraíso”, onde não haja morte, doença ou sofrimento, está
presente em quase todos os povos de cultura tupi e entre vários povos de
região de floresta. Para os Tupinambá, o outro mundo estava reservado aos
valentes, àqueles que teriam matado muitos guerreiros. Para os Guarani,
talvez por influência missionária, esse outro mundo é reservado àqueles que
viveram bem, segundo a maneira Guarani. Alguns grandes pajés e seus
seguidores podem alcançá-lo em vida. Mas, em geral, chega-se a ele só após a
morte.
O feitiço
Tanto a doença como a morte, entre os Guarani, estão associadas a causas
sobrenaturais. Uma delas pode ser o feitiço, chamado de maba’evyky ou
mohãvai. O feitiço está também presente em muitas culturas da América e da
África. Ele pode ser provocado por várias maneiras, como restos de comida
deixados por alguém, ou por um ritual específico. A última pessoa que visitou
determinada pessoa, antes de sua morte, pode ser acusada de “feitiço” e
responsabilizada por aquela morte.
Há também as “rezas para fazer o mal” ou reza forte, chamada de nheengaraí
ou nhemboevai. Por outro lado, há rezas para neutralizar o malefício.
Geralmente é o pajé quem tira o feitiço. Quando ele não consegue livrar
alguém de um feitiço, ou evitar sua morte, é considerado incompetente ou, até,
o responsável por aquele óbito. Nesse caso, ele deve mudar-se da aldeia, para
não ser perseguido ou morto. O nheengaraí é também uma reza para destruir
os mbaépoxy (os maus espíritos) que povoam a terra.

Awaty, milho tradicional guarani

No mito da Terra sem Males (ver box), o pajé, ante a iminência de ser tragado
pelas águas, executou esse solene canto, conseguindo escapar da morte e ser
levado para o outro mundo.
Sepultura e sobrevida
Antigamente, tanto os Guarani como os Tupi, enterravam o falecido dentro da
casa, que era abandonada em seguida. Por influência dos jesuítas, passaram a
construir cemitérios, hoje localizados bem distante das aldeias, justamente
pelo medo dos anguêry. Hoje, quando uma pessoa morre, é enterrada num
caixão ou diretamente na terra, numa cova de cinco a sete palmos de
profundidade.
O corpo fica com os pés voltados ao nascente, para que encontre, com maior
facilidade, o caminho da Terra sem Males, que fica nessa direção, depois do
oceano. Sobre o túmulo, são colocados os pertences e os instrumentos
religiosos do falecido, como o maracá (chocalho). Durante os primeiros dias,
acende-se uma fogueira para iluminá-lo na caminhada. Se é uma criança,
acende-se apenas uma vela, pois, sendo menor, não precisa de muita luz.
Quando a alma já chegou no outro mundo, pode aparecer em sonho, para dar
conselhos.
Os Guarani acreditam que alguém pode reencarnar, tomando o atsyguá, isto é,
o espírito do outro. O nome de alguém já falecido, dado a outra pessoa, pode
significar essa reencarnação. Por sua vez, os que levaram uma vida má podem
se transformar em animais, após a morte.
O povo Guarani
Os Guarani formaram uma grande nação, dividida em vários subgrupos. No
século 16, seu território compreendia o sul da Bolívia, todo o Paraguai, norte
da Argentina e do Uruguai, Rio Grande do Sul, oeste de Santa Catarina e do
Paraná e sul do Mato Grosso do Sul. Hoje constitui a etnia mais numerosa do
Brasil, com uma população de 47 mil pessoas ou mais.
No Brasil, dividem-se em quatro subgrupos:
Kaiowá ou Kaiuá, no Mato Grosso do Sul, com uma população em torno de
35 mil pessoas; Nhandeva ou Avá Guarani, no Mato Grosso do Sul e Oeste do
Paraná, com uma população de aproximadamente 6 mil pessoas; Mbyá, no
Paraguai, norte da Argentina, Uruguai, Rio Grande do Sul, Santa Catarina,
Paraná, São Paulo, Espírito Santo e Pará, com uma população em torno de
5.500 pessoas; Tupi-Guarani, no oeste e no litoral paulista, com uma
população em torno de 500 pessoas.

Em busca da terra sem males
eralmente a "Terra sem Males" é alcançada depois da morte. A idéia de
paraíso é muitas vezes associada à idéia de destruição do mundo, um
dos elementos básicos da religião guarani, como se lê nesse relato.
"Quando Nhanderu, nosso Pai, resolveu acabar com a terra, devido à maldade
dos homens, avisou Guiraí-Poty, o grande pajé, e mandou que ele dançasse.
Este obedeceu-lhe, passando toda a noite em danças e cantos rituais.
E quando terminou de dançar, Nhanderu retirou um dos esteios que sustentam
a terra, provocando um, grande incêndio. E a terra começou a desabar para o
Oeste.
Guiraí-Poty, para fugir do perigo,
partiu com sua família para o
Leste, em direção ao mar. Tão
rápido foi sua fuga, que não teve
tempo nem para plantar e nem para
colher a mandioca. Todos teriam
morrido de fome, se não fosse seu
grande poder, que fez com que
alimentos surgissem pelo caminho.
Quando alcançaram o litoral, seu
primeiro cuidado foi construir uma casa de tábua, para que, quando viessem as
águas, ela pudesse flutuar. Terminada a construção, retomaram o canto e a
dança. O perigo estava cada vez mais perto, pois, para apagar aquele incêndio,
o mar avançou e estava agora para engolir toda a terra. Quando mais subiam
as águas, mais Guiraí-Poty e sua família dançavam.
E, para não serem tragados pela água, subiram no telhado da casa. Guiraí-Poty
chorou, pois teve medo. Mas sua mulher falou: "Se tens medo, meu pai, abre
teus braços para que os pássaros que estão passando possam pousar. Se eles
sentarem no teu corpo, pede para nos levarem para a outra terra, no alto do
firmamento".
Mesmo em cima da casa, a mulher continuou realizando a dança ritual ao som
da taquara, ao mesmo tempo que as águas subiam. Guiraí-Poty entoou então o
canto solene do nheengaraí. Quando todos iam ser tragados pelas águas, a casa
se moveu, girou, flutuou, subiu ... subiu ... até chegar à porta do céu, onde
ficaram morando.

Casa de reza na aldeia Boa Vista - Ubatuba

Esse lugar, para onde foram, é a Terra sem Males. Aí as plantas nascem por si
só. A mandioca já vem transformada em farinha e a caça chega morta aos pés
do caçador. As pessoas não envelhecem, não morrem e aí não há sofrimento".
(História recolhida por Curt Nimuendaju entre os
Avá-Guarani dos oeste de São Paulo, in Lendas da criação
e destruição do mundo. São Paulo: Hucitec/Edusp, 1987,
p. 155-156. (adaptação de B. Prezia)
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