outros: “Morrer tão completamente/ Que um dia ao lerem o teu nome num papel/
Perguntem: ‘Quem foi?...’”; e sibila escorregadio “— Sem deixar sequer esse nome”, na
aliteração do verso conclusivo.
O poema sugere um total aniquilamento do ser, um desaparecer “de corpo e de alma”
que não deixe vestígios de sua existência nem mesmo na memória histórica dos
homens. E atem-se a destacar as peculiares características desse desaparecimento. O
uso em destaque, quase irônico, do adjetivo “felizes!”, a qualificar as flores que
apodrecerão após terem ornado um “triste despojo de carne”, provoca no leitor um
primeiro estranhamento; e a presença em anáfora do verbo intransitivo “morrer”, sete
vezes repetido, somado ao advérbio de intensidade “completamente”, três vezes
grafado ao longo do poema, transmite intensidade ao sentimento de fatalidade e à
obsessão temática de sonoridade langorosa, que acentua no poema o desejo de um
desaparecimento perfeitamente concluído.
O poema exalta a morte, mas não uma morte qualquer. Se a deseja tão completa,
absoluta, certamente necessita de uma vida que a prepare, do contrário, como não
“deixar um sulco, um risco, uma sombra”? Não por acaso, de tanto falar em morte o
poema acaba por tropeçar na vida.
Observemos que na estrofe inicial a locução do discurso é impessoal. Curtos,
enigmáticos, lacônicos, os três primeiros versos acabam por ser mais reflexivos que
apelativos, como quem diz de si para si: “Morrer./ Morrer de corpo e de alma./
Completamente.”, o que faz espargir para os versos seguintes a intimidade monológica
do eu lírico.
Ressaltemos que muito pouco nos é dado saber no poema sobre a vida desse eu lírico,
apenas que ainda vive, já que reflete sobre a morte futura, presumindo que não deixará
saudades nos vivos quando da chegada desta, já que esses certamente derramarão
lágrimas sobre seu rosto muito mais pelo “espanto” que a morte provoca que pelas
lembranças por ele deixadas. Da terceira estrofe, é possível cogitarmos que, embora o
eu lírico possa até aceitar a existência de “uma alma errante” – o que implica um
questionamento existencial, possivelmente religioso, que não sabemos qual é –, não é
seu desejo deixá-la como presença, muito menos rumo a um idealizado céu, a seu ver
impossível de satisfazer ao que dele foi idealizado: “Mas que céu pode satisfazer teu
sonho de céu?”
Nesse ponto, a primeira referência no discurso a uma segunda pessoa permite-nos lê-la
por um lado como limitante destinatária, já que na chave da reflexão interior do eu lírico
que vínhamos fazendo “teu sonho” seria substituída por “meu sonho”, com a resultante
“Mas que céu pode satisfazer meu sonho de céu?” a limitar o destino da mensagem ao
próprio eu lírico locutor, sem quebra do monólogo; ou a podemos ler como amplificante
destinatária, ao substituirmo-la por “nosso sonho”, de nós leitores, implicitamente
convidados a pensar em nossa própria idealização de céu. Assim, a reflexão em curso
no poema passa do foro particular do eu lírico para o nosso.
O verso que abre a estrofe seguinte, “Morrer sem deixar um sulco, um risco, uma
sombra”, expressa desejo que fatalmente demandaria ação em vida para efetivamente
se concretizar, como a que faz exemplarmente a tartaruga marinha após a desova na
areia da praia, que ao voltar para o mar abana o rabo sobre as suas próprias pegadas
na areia a fim de apagá-las e assim proteger seus ovos, sua espécie. A ênfase nesse
apagamento é incrementada ainda mais nas duas últimas estrofes, referência à
nomeação do ser, que se a princípio deve deste ser dissociado, ao ponto de ao lê-lo se
pergunte: “Quem foi?”, completamente deveria desaparecer – nome/ser – sem deixar
vestígio.
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