“epopeias”: o gênero épico como um problema teórico CHRISTINA RAMALHO (UFS/DLI/PPGL/PROFLETRAS/CIMEEP)
Abordar criticamente uma epopeia, como gênero literário, ainda se faz uma questão bastante problemática, uma vez que a crítica, de forma geral, considera o épico como uma manifestação literária que se esgotou no século XVIII, restando, segundo sua visão, apenas algumas tentativas “épico-líricas”, que não obedecem à tradição do gênero, e outras manifestações de feição anacrônica e, por isso, prolixas e aborrecidas. Contudo, não é isso o que se vê no plano da produção literária!
Somente no Brasil, temos um acervo de mais de 200 poemas épicos, desde a época colonial até nossos dias, com destaque para a produção pós-moderna. E o fenômeno é mundial.
Epopeias brasileiras Escritas por mulheres Vozes épicas: história e mito segundo as mulheres (TESE DE DOUTORADO, UFrj , 2004)
Nísia Floresta 1849
Cecília Meireles 1953
Neide Archanjo 1984
Teresa Cristina Meireles de Oliveira 1998
Silvia Jacintho 1993 1994
Raquel Naveira 1993 1996
Leda Miranda Hühne 2008 1981 1986
Stella Leonardos Projeto Brasil
Helena Parente Cunha 2010
FOLHETOS DE CORDEL ÉPICO escritos por mulheres
Epopeias de outras nacionalidades Escritas por mulheres
Gabriela Mistral Chile 1967
Odete Semedo GUINÉ BISSAU 2007
Carmen Borja Espanha 2007
Carmen Boullosa México 2011
EM TERMOS LITERÁRIOS, O que é uma epopeia ?
Um texto “tipo” ilíada e odisseia ?
Um poema looooongo e chato à beça ?
Uma espécie de “saga” contada POR MEIO DE UM POEMA?
Um poema antigo centrado nas aventuras de um herói protegido pelos deuses ?
Um poema longo e monótono que narra eventos históricos com passagens míticas e presença de herÓis , e que, AINDA BEM, já não se escreve mais ?
Um tipo de produção literária que caiu em desuso e foi substituído pelo romance?
Um poema dividido em cantos que não consegue encantar ninguém ?
A obra literária que mais necessita de notas de rodapé ?
Resgatar o épico pode ser uma batalha …
CENTRO INTERNACIONAL E MULTIDISCIPLINAR DE ESTUDOS ÉPICOS – CIMEEP/UFS
Revista épicas – WWW.REVISTAEPICAS.COM
O gênero épico, considerado por grande parte da crítica um gênero esgotado no século XVIII, reuniu (e reúne), contudo, através dos séculos seguintes, produções literárias cuja precariedade teórica em relação à evolução do gênero impediu seu reconhecimento e mesmo sua inserção nos percursos épicos ocidentais. No século XX, entretanto, a presença marcante de poemas longos com evidentes traços épicos exigiu um redimensionamento teórico e crítico em relação ao gênero. E o século XXI tem ratificado a pertinência desse redimensionamento.
Um “agravante”: Ainda que, por ser uma linguagem literária, a poesia épica tenha a propriedade de propor reflexões sobre o estar no mundo e suas injunções, a natureza encomiasta de muitas obras, principalmente daquelas produzidas até o final do século XIX, atenua sensivelmente seu potencial transgressor quando a questão em foco envolve História, heroísmo e nação.
A poesia épica tem feito circular imagens mítico-históricas ligadas à Histórica Canônica, daí, muitas vezes, não representar uma voz de transgressão, mas uma voz de reafirmação de valores historicamente cultuados como os mais relevantes a partir de uma ótica patriarcalista , cristã e branca.
A FORÇA CULTURAL DO ÉPICO A produção épica carrega consigo importantes informações culturais , o que faz dela um acervo relevante para a compreensão dos caminhos seguidos por um povo em sua trajetória histórica, ainda que a própria obra muitas vezes não discuta o caráter perverso de muitas das motivações que levaram (e levam ) esse povo a caminhar de determinada forma.
O texto épico é, portanto , controvertido, característica que o torna ainda mais merecedor de um olhar crítico atento. E um aspecto pode marcar o início desta abordagem : por que tantos e tantas poetas, em determinado momento, elegem o épico como forma de manifestação literária ?
Dante, Homero, Lucano , Virgílio e outras grandes figuras da Antiguidade. (Canto IV de Divina Comédia, de Dante, ilustração de Gustave Doré )
Cessem do sábio Grego e do Troiano As navegações grandes que fizeram ; Cale-se de Alexandre e de Trajano A fama das vitórias que tiveram ; Que eu canto o peito ilustre Lusitano, A quem Neptuno e Marte obedeceram . Cesse tudo o que a antiga Musa canta, Que outro valor mais alto se alevanta . (CAMÕES , Os Lusíadas )
RETOMANDO A PERSPECTIVA TEÓRICA
ALGUMAS CONTRIBUIÇÕES TEÓRICAS E CRÍTICAS
CECILE BOWRA voltaire
JEAN-PIERRE MARTIN
LEO POLLMANN LYNN KELLER BASSIROU DIENG
SAULO NEIVA
FLORENCE GOYET Raúl marrero-fente JOSEPH BÉDIER
Christiane seydou
NELY MARIA PESSANHA CHARLOTTE KRAUSS ELENA LANGLAIS
ALAIN SISSAO Claudine Le blanc DELPHINE RUMEAU
1984 1987 2018
2007 2015 2022
ANAZILDO VASCONCELOS DA SILVA Em 1984, com a Semiotização literária do discurso, e em 1987, com Formação épica da literatura brasileira , resgatou o gênero épico, definindo e redefinindo categorias teóricas como: “ matéria épica”, “dupla instância de enunicação ”, “ herói épico”, “modelos épicos”, “ciclos épicos” e “planos histórico e maravilhoso ”, além de diferenciar epopeia e romance.
Reconhecendo um poema épico A partir da Teoria Épica do Discurso (de Silva), um poema épico apresenta : a) Dupla instância de enunciação – lírica e narrativa; b) Presença de uma matéria épica – temática que integra história e mito; c) Presença de três planos – histórico, maravilhoso e literário ; d) Façanha heroica , estabelecendo um deslocamento ou uma viagem (espacial ou simbólica); e) Uso de partes tradicionais de uma epopeia : invocação, proposição, divisão em cantos, etc. (quando há intenção épica). f) Ordenação ou sequência poemática que sugira “princípio, meio e fim”.
ASPECTOS DE UM POEMA ÉPICO SEGUNDO POEMAS ÉPICOS: ESTRATÉGIAS DE LEITURA (2013) DEDICATÓRIA PROPOSIÇÃO INVOCAÇÃO DIVISÃO EM CANTOS PLANO HISTÓRICO PLANO MARAVILHOSO PLANO LITERÁRIO HEROÍSMO ÉPICO
ANTI-ODE Não cantarei vencedores que vencedores não houve, que vencedores, se os houve, foram caboclos vencidos pelo armamento da fome. Não cantarei vencedores que vencedores não há se há condição desigual, que os desarmados caboclos por força armada vencidos armados foram de um ideal. Não cantarei vencedores: acaso existe vitória se o injustiçado perdeu? Como negar essa glória de morrer pelo direito de defender o que é seu? Romanceiro do contestado (1996), de Stella Leonardos
INVOCAÇÃO I. A invocação quanto ao/à destinatário/a da invocação : (a) invocação pagã; (b) invocação judaico-cristã; (c) invocação humana; (d) invocação à natureza; (e) invocação à pátria; (f) invocação simbólica; (g) invocação multirreferencial; (h) metainvocação; (i) autoinvocação.
Senhora Conceição Senhora dos Navegantes ouvi meu apelo enclausurado em torno destas dunas e fazei cantar o coro de Oxum vossas sereias mágico lamento a me espinhar sob a oferenda que espalhei saudando as estrelas-guias as ondinas e os indaiás os calungas e os tarimás enfunada procissão que abre agora esta estrada de mar. Oh, bela Uiara, vem coberta de esperança que preciso contornar o labirinto e entrar no vosso reino rosácea azul brilhante onde há centenas de milhões de anos fez-se a vida onde sentada em seu mistério a eterna mãe me espera marinha água cintilante. (ARCHANJO, Neide. As marinhas, 1984, p. 60-61)
Projetos em andamento A AUTORIA FEMININA NO ACERVO RAYMOND CANTEL: MAPEAMENTO E ESTUDO CRÍTICO DE FOLHETOS DE CORDEL (PIBIC/UFS/2022-23) HISTÓRIA DA EPOPEIA NAS AMÉRICAS (e m parceria com Cristina Fernández, da Universidad Nacional de Mar del Plata; Juan Héctor Fuentes, da Universidad de Buenos Aires, e Raúl Marrero -Gente, da University of Minnesota Anthologie de textes épiques brésiliens ( No prelo, Université de Rouen)
A VIAGEM ÉPICA
O deslocamento , espacial ou imaginário , leva o ser humano a entrar em contato com o novo . Se isso se faz em uma perspectiva simbólica coletiva , que inclui um plano histórico e um plano maravilhoso , o caráter épico fica evidente.
A “pulsão migratória” (Michel Maffesoli ), compreendendo a necessidade de deslocamento para a conquista de novos espaços, hábitos e parceiros, amplia a própria identidade humana e enriquece o imaginário coletivo global. Essa força de representação coletiva que o ser em deslocamento possui caracteriza perfeitamente a inscrição do sujeito épico, pois o heroísmo épico está atrelado ao deslocamento espacial, temporal e mesmo mental ou simbólico, a depender da época em que se insere a epopeia.
HEROÍSMO E SOCIEDADE
Os heróis (e heroínas) épicos são ícones da inserção afirmativa do humano no mundo, daí se fazerem, em suas diferentes constituições ou perfis através dos tempos, referentes para a compreensão das várias formas de assimilação cultural do histórico e do maravilhoso pela sociedade ocidental.
1971
Não sei se é lenda ou verdade, Seu moço, falo por mim, A lenda sempre começa Quando uma história tem fim. Pois se a história nos conta Que Virgulino nasceu, A lenda logo acrescenta Que Lampião não morreu. Além da história e da lenda, Existe o sonho do povo Que entre o que houve e não houve Inventa tudo de novo. Por isso a lenda é mais certa Do que o sonho e a história, Pois Lampião anda vivo Dentro de cada memória. MARCUS ACCIOLY, Nordestinados , , 1978:119.
POESIA ÉPICA A TERRA EM REPRESENTAÇÃO
“De certo modo, as pessoas ungem a terra onde acreditam que se localiza a energia que as fortalece. Existe uma relação orgânica entre a terra e as estruturas que as pessoas constroem sobre ela.” JOSEPH CAMPBELL, O poder do mito (2001, p.99)