cuidado. Nenhuma arte foi requerida para bater os pregos com os martelos, nenhum pigmento
vermelho necessário para fazer sangue de verdade jorrar de suas mãos, pés e lado. Sua boca
contorceu-se e seus lábios ficaram retorcidos no mero ato de erguê-lo para a cruz. Nós já
teologizamos tanto a paixão e a morte desse homem santo que não enxergamos mais o vagaroso
rasgar dos tecidos, o alastramento da gangrena, sua sede exacerbada.
Em sua obra monumental, The crucified God, Jurgen Moltmann escreve: "Tornamos a
amargura da cruz, a revelação de Deus na cruz de Jesus Cristo, tolerável para nós mesmos
aprendendo a compreendê-la como uma necessidade no processo da salvação".
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Roslyn e eu estamos caminhando ao longo da Royal Street no Bairro Francês de Nova
Orleans. Adjacente à infame Borboun Street com seus entrepostos de jazz, lojas de camisetas e
sex-shops, a Royal é pontuada de lojas de antiguidades.
— Venha ver isso — diz o antiquário. — A Vénus custa mais, mas esse Cristo crucificado de
marfim é bonito a seu modo, especialmente contra um fundo roxo.
E quanto mais o reproduzimos, mais esquecemos a respeito dele e da agonia da sua terceira
hora. Transformamo-lo em ouro, prata, marfim ou o que quer que seja a fim de nos libertarmos
da sua agonia e morte como homem.
"Aquele que não conheceu pecado, ele o fez pecado por nós; para que, nele, fôssemos feitos
justiça de Deus" (2Co 5:21). Cada espécie de pecado e suas conseqüências, a doença e a
enfermidade de todo tipo, a dependência em drogas, o alcoolismo, os relacionamentos partidos,
a insegurança, o rancor, a luxúria, o orgulho, a inveja, o ciúme, o câncer, a osteoporose, a artrite
e assim por diante, foram experimentados e levados pelo que era "como um de quem os
homens escondem o rosto, desprezado" (Is 53:3), que conheceu O ápice de uma agonia que
ninguém jamais sonhou. "A saber, que Deus estava em Cristo reconciliando consigo o mundo,
não imputando aos homens as suas transgressões, e nos confiou a palavra da reconciliação"
(2Co 5:19). Jesus Cristo pregado no madeiro transferiu nossa dor para a paz da graça. Ele fez a
paz através do sangue da sua cruz (Cl 1:20).
Jesus viajou aos mais distantes recessos da solidão. Em seu corpo alquebrado ele levou sobre
si os seus pecados e os meus, toda separação e perda, todo coração quebrado, toda ferida de
espírito que se recusa a fechar, todas as dilacerantes experiências de homens, mulheres e
crianças ao longo dos milênios da história.
Jesus é Deus. Você e eu somos formados da argila da terra e do beijo da sua boca.
O que diremos diante de tamanha efusão de amor? Como responderemos?
Em primeiro lugar, o amor de Cristo e de seu evangelho de graça chama a uma decisão
pessoal, livre e não-convencional. Responder é reconhecer que o outro tomou a iniciativa e
lançou o convite. A abertura do outro tornou a resposta necessária.
O outro, no entanto, não é um vendedor itinerante vendendo quinquilharias na sua porta.
E Cristo oferecendo uma oportunidade única na vida: "Eu vim como luz para o mundo, a fim
de que todo aquele que crê em mim não permaneça nas trevas" (Jo 12:46).
Há um poder extraordinário no ato de contar histórias, um poder que estimula a
imaginação e forma uma impressão indelével na mente. Jesus emprega um conjunto de
histórias, conhecidas como parábolas "de crise", para lançar uma advertência, um chamado ao
arrependimento, devido ao adiantado da hora. Jesus diz: "um maremoto está se aproximando e
vocês estão vagueando pelo terraço e fazendo uma festa". Ou, como coloca Joachim Jeremias:
"Vocês estão se banqueteando e dançando — em cima de um vulcão que pode entrar em
erupção a qualquer momento".
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A crise iminente torna o adiamento inconcebível. "Vigiai, pois,
porque não sabeis quando virá o dono da casa: se à tarde, se à meia-noite, se ao cantar do galo,
se pela manhã; para que, vindo ele inesperadamente, não vos ache dormindo. O que, porém,
vos digo, digo a todos: vigiai!"
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JURGEN Moltmann, The crucified God. Nova York: Harper & Row, 1974, p. 108.
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Joachim JEREMIAS. As parábolas de Jesus. São Paulo. Edições Paulinas, 1978.
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