sorte de nações desenvolvidas do Hemisfério Norte. Nélson Rodrigues batizou de complexo de vira-
latas nosso complexo de inferioridade diante dos outros países. O brasileiro é um narciso às
avessas, cospe em sua própria imagem. Nada melhor para cuspir em nossa própria imagem do que
uma tragédia na qual mais de 230 jovens perdem a vida de maneira completamente inesperada.
Nós, brasileiros, somos piores que os outros. Não cuidamos da segurança de estabelecimentos
que recebem grande número de pessoas, não pensamos em prevenção, não punimos ninguém, não
nos preocupamos com o bem-estar de nossos jovens etc. A lista de nãos é longa e mostra o que
não temos que os outros têm. Isso faz parte de nossa identidade nacional.
Muitos brasileiros, talvez a maioria, usam um acontecimento como o de Santa Maria – algo
trágico, sem dúvida, mas pontual e específico – e fazem generalizações que lhes permitem falar
sobre um país inteiro. Usa-se um episódio para criticar um país inteiro. Qualquer um pode falar
qualquer coisa na ausência de dados e de informações. O complexo de vira-latas exige o
provincianismo. Quanto mais ignoramos o que ocorre no mundo, mais fácil se torna falar mal do
Brasil.
A lista de tragédias com muitas mortes por incêndios em boates nos Estados Unidos é longa. No
Cocoanut Grove, em Boston, em 1942, morreram 492 pessoas; no Conway’s Theater, no Brooklyn,
em Nova York, em 1876, 285; no Rhoads Opera House, na Pensilvânia, em 1908, 170. Essa
lista(leia abaixo) é ainda maior, mas bastam esses exemplos para mostrar que o Brasil está
acompanhado pela nação mais rica do mundo.
Um americano vítima do complexo de vira-latas afirmaria que seu país não aprende com as
tragédias. Em 1903, em Chicago, 602 perderam a vida. Apenas cinco anos mais tarde outras 170
pessoas morreram na Pensilvânia. Pior ainda, os americanos não aprendem mesmo: agora mesmo,
em 2003, um incêndio no The Station Nightclub, em Rhode Island, matou 100 jovens. Mais de 100
anos se passaram da maior tragédia, e esses gringos não se previnem, não cuidam de seus
jovens... A propósito, excetuando o evento de Santa Maria, cinco dentre as dez maiores tragédias
desse tipo ocorridas no mundo inteiro foram nos Estados Unidos. Eles realmente são negligentes,
não se previnem, não cuidam do divertimento de seus jovens... O mais interessante é que as
maiores tragédias americanas ocorreram na Nova Inglaterra, região mais desenvolvida do país. Soa
estranho ouvir isso. Soa estranho criticar e falar mal dos Estados Unidos. O familiar, para nós, é
falar bem deles e mal de nós mesmos.
Os dados mundiais e americanos mostram que os incêndios em casas noturnas com mortos
equivalem, em muitos aspectos, aos acidentes aéreos. Acidentes e crimes sempre ocorreram e
sempre ocorrerão. Não há país que tenha criminalidade igual a zero, e nunca haverá. Não há um
ano sem acidentes aéreos, e nunca haverá. O que é possível fazer, e vem sendo feito, é reduzir a
taxa de acidentes aéreos. A caixa-preta foi criada justamente para isso. Como os acidentes aéreos
são inevitáveis, concebeu-se um sistema de registro dos dados do voo, com a finalidade de
compreender o que resulta em acidentes. De posse desse conhecimento, as autoridades
regulatórias tomam medidas de prevenção, com a finalidade de minimizá-los.
Para que ocorra um acidente aéreo, assim como incêndios com mortos em casas noturnas, é
preciso que várias coisas erradas aconteçam. O acidente da TAM em Congonhas, quando a
aeronave não conseguiu aterrissar, aconteceu porque o avião estava lotado, o abastecimento de
combustível tinha sido completo (deixando a aeronave o mais pesada possível), o dia era chuvoso,
a pista estava em reforma e sem os sulcos que ajudam na frenagem, o reversor de um motor estava
desativado etc. A tragédia da boate Kiss ocorreu porque houve um show pirotécnico, a proteção
acústica (altamente inflamável) do teto não estava devidamente revestida, a boate estava
superlotada, a porta de saída não era larga o suficiente para uma evacuação rápida, muitos jovens
acharam que estariam protegidos no banheiro etc. Aí estão as semelhanças entre os acidentes
aéreos e as tragédias em boates.
O que nos revolta é a principal diferença. É muito mais fácil evitar o que ocorreu em Santa Maria
do que as fatalidades aéreas. É mais fácil evitar, sim. Mas é muito difícil, como o caso dos Estados
Unidos nos mostra, eliminar tais episódios. Uma grande quantidade de tragédias por incêndio em
casas noturnas acontece por causa de shows pirotécnicos. Para que haja uma redução significativa
de tais fatalidades, basta que shows desse tipo sejam proibidos e a lei seja cumprida. Quem não
cumprir a lei deve ser processado.
O que é especificamente brasileiro é a nossa dificuldade em cumprir a lei. Mas, não custa repetir,
não devemos também esperar que o fiel cumprimento da lei resulte num mundo maravilhoso e sem
tragédias. Os americanos estão no outro extremo, são fiéis cumpridores de leis e regulamentos,
sentem-se culpados quando não o fazem, nem por isso sua vida em sociedade é melhor que a
nossa.