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JEAN-JACQUES ROUSSEAU
homem lépido, alegre, vigoroso, saudável; sua presença inspira
alegria; seus olhos proclamam contentamento, bem-estar; ele
carrega consigo a imagem da felicidade. Chega uma carta do
correio; o homem feliz olha-a, está endereçada a ele, ele abre-a
e a lê. No mesmo instante sua fisionomia muda; ele empali-
dece, desmaia. Voltando a si, chora, agita-se, geme, arranca
os cabelos, faz o céu tremer com seus gritos, parece tomado
de tremendas convulsões. Insensato! Que mal te fez esse pe-
daço de papel? que membro te arrancou? que crime te levou
a cometer? que mudou ele em ti para te pôr no estado em
que te vejo?
Se a carta se tivesse perdido, se uma mão caridosa a hou-
vesse jogado no fogo, a sorte desse mortal, feliz e desgraçado
a um tempo teria sido, ao que me parece, um estranho pro-
blema. Sua desgraça, direís, era real. Certo, mas ele não a
sentia. Onde estava ele então? Sua felicidade era imaginária.
Entendo; a saúde, a alegria, o bem-estar, a satisfação de espírito
não passam agora de. visões. Não existimos mais onde nos en-
contramos, só existimos onde não estamos. Valerá a pena ter
tão grande medo da morte se aquilo em que vivemos permanece?
Ó homem! encerra tua existência dentro de ti e não serás
mais miserável. Fica no lugar que a natureza te designa na
cadeia dos seres, nada poderá arrancar-te dele; não te revoltes
contra a dura lei da necessidade e não esgotes, querendo resis-
tir-lhe, forças que o céu não te deu para prolongar tua exis-
tência e sim, tão somente, para conservá-la como lhe agrada
e enquanto lhe agrada. Tua liberdade, teu poder só vão tão lon-
ge quanto tuas forças naturais, e não além; tudo mais não
passa de escravidão, ilusão, prestígio. A própria dominação é
servil, quando se apega à opinião, pois dependes dos preconcei-
tos daqueles que governas pelos preconceitos. Para guiá-los
como ,te agrada é preciso que te conduzas como lhes agrada.
Que mudem de maneira de pensar e terás forçosamente que
mudar de maneira de agir. Basta que os que estão perto de
ti saibam orientar as opiniões do povo que pensas governar,
ou dos favoritos que te governam, ou as de tua família, ou as
tuas próprias: esses vizires, esses cortesãos, esses padres, esses
soldados, esses lacaios, esses palhaços e até crianças, ainda que
sejas um Temístocles de gênio 3 vão te conduzir como um pir-
(3) Este menino que vedes aí, dizia Temístocles a seus amigos,
é o árbitro da Grécia. Ele governa a mãe, a mãe me governa, eu
EMÍLIO ou DA EDUCAÇÃO 67
ralho no meio de tuas legiões. Por mais que faças, nunca tua
autoridade real irá além de tuas faculdades reais. Desde que
seja preciso ver pelos olhos dos outros será preciso querer
pelas vontades deles. Meus povos são meus súditos, dizes alti-
vamente. Admito-o. Mas quem és tu? o súdito de teus mi-
nistros. E que são teus ministros por sua vez? os súditos de
seus funcionários, de suas amantes, os lacaios de seus lacaios.
Tomai conta de tudo, usurpai tudo, derramai dinheiro a man-
cheias; erguei baterias de canhões; levantai forcas e cruzes; pro-
mulgai leís; multiplicai os espiões, os soldados, os carrascos, as
prisões, as algemas: pobres homenzinhos, de que vos serve ísso?
Não sereis mais bem servidos, nem menos roubados, nem menos
enganados, nem mais absolutos. Díreis sempre: queremos, e
fareis sempre o que quiserem os outros.
O único indivíduo que faz o que quer é aquele que não
tem necessidade, para fazê-lo, de pôr os braços de outro na
ponta dos seus; do que se depreende que o maior de todos
os bens não é a autoridade e sim a liberdade. O homem real-
mente livre só quer o que pode e faz o que lhe apraz. Eis
minha máxima fundamental. Trata-se apenas de aplicá-la à in-
fância, e todas as regras da educação vão dela decorrer.
A sociedade fez o homem mais fraco, não somente lhe ti-
rando o direito que tinha sobre suas próprias forças, como
também as tornando insuficientes. Eis porque seus desejos se
multiplicam com sua fraqueza e eis o que faz a fraqueza da
infância, comparada.com a idade do homem. Se o homem é
um ser forte e a criança um ser fraco, não é porque o primeiro
tenha mais força absoluta que o segundo, mas é porquê o pri-
meiro pode naturalmente bastar-se a si mesmo e o outro não.
O homem deve portanto ter mais vontades e a criança mais fan-
tasias, palavra com que quero dizer todos os desejos que não
são necessidades reais, que só podemos contentar com o auxílio
de outrem.
Disse da razão desse estado de fraqueza. A natureza a
isso remedeia pelo apego dos pais e das mães; mas esse apego
pode ter exageros, defeitos, abusos. Pais que vivem na socie-
dade, para ela transportam o filho antes do tempo. Dando-lhe
maiores necessidades do que ele tem, não aliviam sua fraqueza,
governo os atenienses, e os atenienses governam os gregos. Quan-
tos pequenos condutores encontraríamos muitas vezes nos maiores im-
périos, se do príncipe decêssemos por degraus até a última mão: que,
em segredo, põe tudo em movimento!